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A palavra "ideologia" não tem culpa dos tratos de polé a que tem sido submetida quer por políticos, quer pelos seus ampliadores naturais, os jornalistas. A palavra tem uma história complicada e nem sempre unívoca desde que, com Desttut de Tracy, entrou no vocabulário político e das ciências sociais. Mil polémicas interpretativas rodeiam o conceito e, nos tempos arqueológicos do althusserianismo da minha geração, era muitas vezes por aí, pela discussão da "verdadeira" interpretação marxista da ideologia, que se começava. A ideologia era a ciência ao contrário, ou seja, a ocultação deliberada da realidade pelos interesses de classe que produziam um discurso (ideológico) que mascarava a realidade. A ela se opunha o socialismo, inerentemente científico, o reverso da ideologia. Mas a esquerda esqueceu a sua tradição marxista e como sofreu vários abalos à sua identidade, o maior e mais recente, o fim do "socialismo real", voltou a uma nostalgia da identidade, ou seja, da distinção ideológica com a direita.
Circula por isso, um pouco por todo o lado, essa enorme orfandade e nostalgia do mundo da Guerra Fria, onde não havia pretos de cabelos louros, nem brancos de carapinha. Tudo quanto é articulista faz elogios a qualquer coisa que pareça ser um "retorno à ideologia", quer à esquerda, quer à direita, e aceita como sinal desse retorno qualquer frase, declaração e posição que se auto-intitule de "ideológica", mesmo que seja apenas um discurso deslavado, muitas vezes apenas auto-justificativo e propagandístico. Um festim deste "retorno à ideologia" deu-se nas últimas jornadas parlamentares do PS, onde, de Mário Soares a Sócrates, se tentou formular uma vaga teoria justificativa das posições de "esquerda" do PS, em contraponto à direita, ao "neoliberalismo" do PSD. Não por acaso todo este discurso é feito completamente à margem daquilo que é a prática dos mesmos que hasteiam a bandeira ideológica do Governo, como se houvesse dois níveis na realidade, um é o do discurso puramente ideológico, outro o que se faz na realidade, como se este segundo nível fosse resultado de um estado de necessidade, de um qualquer deus ex-machina que implica políticas fora do discurso ideológico dos que a aplicam, como se fossem resultado de um obrigação da natureza, como a fome, a sede, e o sexo. Como disse um responsável socialista, o "défice não é de esquerda nem de direita", o que é uma bem estranha afirmação, mas bem significativa dos tempos que correm. Um malévolo discípulo de Alain diria que esta é uma típica frase de direita.
Já comparei a "narrativa" que se fez nas jornadas parlamentares do PS da história das últimas décadas que levaram à crise actual a uma história da Carochinha, mais uma das que correm na vida política portuguesa com abundância nos tempos socráticos. Sem desprimor para a Carochinha, nem para o seu consorte Ratão. É não só uma "narrativa" sem qualquer correspondência com a realidade, como não tem qualquer consequência na política, na acção concreta. Chamar a isto "ideologia" é também dar uma palavra-caução a uma história auto-justificativa, sem substância teórica e... sem ideologia. Se é assim que a esquerda hoje "pensa", está bem arranjada a esquerda.
Em traços largos a história da Carochinha é esta: desde a senhora Thatcher que o mundo é governado por uma espécie particular de criminosos que são chamados "neoliberais". Mário Soares salientou este aspecto criminoso dos "neoliberais" lamentando-se de que apenas Madoff esteja preso (claro que esta esquerda faz de conta que um dos seus gurus anti-especulação é George Soros...). Em Portugal, Sócrates dixit, o "neoliberal" máximo dos dias de hoje é Passos Coelho, cujo objectivo é o "desmantelamento do Estado social", e este perigoso "neoliberal" é o dirigente social-democrata mais elogiado por Mário Soares e aquele com que José Sócrates co-governa o país. Encaixam as coisas umas nas outras? Nada, mas não têm importância. Basta a enunciação "ideológica", para épater le bourgeois e a ignorância jornalística e chega. O resto não importa.
A mesma história da Carochinha considera que estes criminosos "neoliberais", representados por sinistras figuras como Reagan, os dois Bush e presumo que Berlusconi, desregularam tudo, incentivaram a passagem de uma economia industrial para uma "economia de casino", assente na especulação financeira, nos offshores, no papel sobre papel sobre papel sobre papel, cujo vazio teria que estourar mais dia, menos dia. É óbvio que algumas destas coisas aconteceram, havia muito papel sobre papel sobre papel, mas os Estados usaram esta "economia de casino" para aumentar o welfare state, mesmo nos EUA onde muita da especulação imobiliária que estourou com a crise do Fredie Mac (nome completo: Federal Home Loan Mortgage Corporation) e Fannie Mae (nome completo: Federal National Mortgage Association), o primeiro acto da crise actual. Ambos eram government sponsored enterprises (GSE) e os nomes não enganam na sua filiação rooseveltiana, assim como a sua história recente, quando aquilo que mais tarde veio a ser metido na classificação genérica de "economia de casino" foi resultado de impulsos "sociais" da presidência Clinton para que muitos americanos pudessem aceder a habitação. Encaixa? Não encaixa, mas nunca são Carter, nem Clinton que são lembrados.E mesmo na Europa, quem são esses tenebrosos "neoliberais" que desregularam tudo e encurralaram o Estado num minimalismo criminoso? Não foi certamente Chirac, um conservador estatista, no qual os defensores da golden share teriam um mestre. No entanto, tal descrição calha bem, por exemplo, em Blair. Blair, membro do Partido Trabalhista, que canta a "Bandeira Vermelha" nos congressos do partido. Encaixa? Não encaixa, mas pouco importa.O discurso corrente é que todas as medidas actuais, que os socialistas deveriam abominar, se tomassem a sua própria ideologia a sério, são justificadas para garantir a "sustentabilidade do Estado social". Na verdade, a realidade é bem diferente. O alvo de todas estas medidas é o próprio Estado social que se diz defender. Cortes de salários e de regalias sociais, fim de subsídios de desemprego, subida da idade de reforma, cortes no investimento público (esse tributo que se paga a um keynesianismo de bolso), são medidas que os socialistas incluiriam no catálogo daquilo que acham ser o "neoliberalismo". Ou seja, os socialistas tomam medidas "neoliberais", para defender o "Estado social", o que também não encaixa lá muito bem. Estamos mais uma vez no domínio da Carochinha.
O problema é outro: é que nem a crise teve origem naquilo que dizem ter acontecido, nem aquilo que consideram ser o "neoliberalismo" existe enquanto tal, nem a narrativa histórica dos últimos anos corresponde a não ser a um fragmento da realidade. Eles deliberadamente ignoram que mais do que o papão do "neoliberalismo", quem esteve à frente dos destinos da Europa foram estatistas quer de esquerda, quer de direita, e que o que se fez foi acima de tudo criar um Estado-providência, o chamado "modelo social europeu", impossível de sustentar, quer pela demografia, quer pelo efeito de competição da globalização. Ou seja, a crise actual, tendo uma componente financeira que é a única de que os socialistas falam, foi muito para além e acabou por mostrar a dimensão de fragilidade do "modelo social" construído na dívida e no défice, e por isso impossível hoje de se manter. E como não havendo dinheiro não há vícios, os socialistas fazem à contre coeur aquilo que abominam, porque acabou o período em que o dinheiro permitia viver-se muito acima das possibilidades. Agora o acordar é duro, mas podiam poupar-nos a esta fábula inventada da Carochinha para encontrarem nos outros uma responsabilidade que também partilham, e continuar a esperar que nada mude, quando tudo mudou. É que, se há "ideologia" que não se come, é esta e o comer vai estar muito no centro das preocupações dos povos.
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