quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Retratos Antigos De Um País De Luxo Que, Por Um Motivo Ou Outro, Todos Nós Visitámos

Das "Cartas Abertas" do Comendador Marques De Correia
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Onde o nosso Comendador, chato como só ele sabe ser, descreve um país imaginário onde tudo é luxuoso e fantástico - criando a falsa e perniciosa ilusão de que é possível viver num país assim.

Conheci um país, meus caros amigos, onde o IVA era a 16 por cento. Os cidadãos viviam contentes e satisfeitos e só tinham medo de uma coisa: que os subsídios da CEE acabassem de repente. Mas, como costumavam comentar, "amanhã não seria a véspera desse dia".
Nesse país distante - são anos que nos separam dele - era possível viver sem trabalhar. Os imigrantes, vindos de todos os lugares do mundo, trabalhavam por todos. Faziam estradas, pontes, centros culturais. E de tal modo era bom esse país que, de lugares distantes da Europa, chegavam engenheiros e médicos apenas para trabalhar nas suas obras ou para amanharem os seus jardins. Os naturais, esses, congratulavam-se com sinecuras que o Estado distribuía abundantemente. Também havia uns poucos que se esforçavam e outros que diziam que aquela vida era insustentável, mas eram raros e tinham a alcunha de "velhos do Restelo" ou de "profetas da desgraça".
Nesse país construíam-se estádios de futebol. Muitos estádios de futebol - uns monocolores, outros às pintas, outros, ainda, às riscas. Uns eram construídos dentro das cidades, outros nos arredores; uns para clubes de futebol lá jogarem, outros apenas para enfeitar a paisagem e permitir que empreiteiros barrigudos lucrassem com o esforço de cimento e suor dos engenheiros da Ucrânia, dos médicos da Roménia, dos advogados da Rússia que eram imigrantes e capatazes de obras, ou com as migalhas dos africanos e brasileiros que também por lá andavam.
Nesse país também havia centros culturais e bibliotecas. Dizia-se - mas seria lenda - que havia vilas com mais bibliotecas do que leitores ou mesmo do que livros - porque não havia terriola que não tivesse o seu auditório, o seu museu, a sua biblioteca e os seus programadores culturais. Nesse país, quando havia obras, a que se chamavam Polis, havia festas com bombos e fanfarras a anunciar as mudanças, e só depois chegavam os trabalhadores que eram, como sempre, estrangeiros.
Mas nesse país o que mais havia era estradas e autoestradas que não se pagavam. Uma pessoa queria ir de uma terriola a outra e só tinha que decidir por que autoestrada seguiria. Chamavam-se SCUT por que eram Sem Custos para o Utilizador; o utilizador não pagava nada e podia andar por elas à vontade. Nesse país havia mesmo uma região que era aquela que no mundo tinha mais autoestradas por habitante, ou por metro quadrado ou por outro critério qualquer. Claro que as autoestradas passavam ao lado dos estádios de futebol, porque sendo uns e outros tantos, era impossível estarem longe.
Toda a gente queria viver nesse país. Estava no pelotão da frente. E, desde que os subsídios continuassem, apenas era preciso falar de reformas para parecer que se estava a fazer alguma. Não era mesmo preciso fazer reforma nenhuma. O país vivia à conta.
Nunca mais vi esse país. Não sei onde fica, a idade levou-me a memória. Sei que é longe, e que na minha memória a fantasia se mistura com a realidade. Nem me parece que seja possível haver um país assim, tão cheio de coisas inúteis, que se dê ao luxo de ter médicos, juristas e engenheiros a servir de criados de mesa e de operários da construção. Nem que seja possível confiar apenas em subsídios, sem perceber que eles um dia acabam. Porém, sempre que falo desse país, alguém me diz: "Espere! Eu lembro-me de um país qualquer assim" - e é isso que me indica que, se calhar, eu o vi tal qual o descrevo aqui

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