Artigo de Henrique Raposo
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A coscuvilhice pseudo-libertária da WikiLeaks tem como pano de fundo uma das marcas das nossas sociedades pós-moderninhas: a ausência de privacidade; a ausência de fronteiras entre o público e o privado; a ausência de critérios morais para se definir o que é 'interesse público'. Julian Assange está a revelar aqueles segredos sem qualquer critério. Não está a revelar nada de realmente grave. Não há ali nenhum Watergate diplomático. Assange está a revelar aquilo, porque sim, porque é giro, porque é mediático.
Ora, este pseudo-escândalo é - repito - a versão diplomática de algo que acontece todos os dias no nosso quotidiano: a alergia à privacidade. Há dias, no cinema, várias jovens atenderam o telemóvel, e começaram a falar ali mesmo, expondo a sua vida privada no meio de estranhos. E - o que é trágico - este fenómeno do Entroncamento é uma constante diária. Repete-se no Metro, no supermercado, no café, etc. A nossa vida social transformou-se num teatro confrangedor, porque as pessoas expõem as suas entranhas sentimentais no meio da rua. Em tempos, ainda cheguei a pensar que isto acontecia porque queriam atenção. Ou seja, cheguei a pensar que apenas queriam aquela esmola sentimental que só um estranho pode dar. Mas não é isso. Estas pessoas, muito simplesmente, não veem os outros, não veem as outras pessoas, e, por isso, comportam-se na rua como se estivessem no quarto. Nem sei por que razão andam vestidas. Podiam sair à rua de ceroulas e pantufas.
Nós estamos a criar uma estranha forma de gente. Estamos a criar uma sociedade que está a abolir o primado das quatro paredes. E, com isso, não morre apenas a liberdade per se. Morre também a empatia, o preâmbulo emocional da liberdade. Hoje, é possível viver-se numa bolha de egoísmo tecnológico. Uma pessoa pode saltitar de nenúfar virtual em nenúfar virtual (mail, redes sociais, blogues), sem nunca colocar os pés na realidade. Um jovem pode passar semanas sem entrar em contacto empático com outras pessoas. Porque uma pessoa não é o mesmo que um nickname ou um daqueles 'amigos' do Facebook. Não por acaso, Julian Assange coloca aqueles segredos insignificantes na Internet sem ter em consideração a carreira e a vida das pessoas envolvidas. Nem lhe interessam os efeitos nefastos que aquilo vai causar à comunidade internacional. Se as jovenzinhas do cinema aboliram a privacidade, Assange quer abolir a diplomacia, que é a 'privacidade' da política internacional. Faz sentido, sim senhor.
Esta cultura internética que nos apascenta não está apenas a mudar a forma como as pessoas pensam. Também está a mudar a moral das nossas sociedades, está a matar a empatia. Sim, a empatia entre duas pessoas, essa coisa quase arqueológica, que não é o mesmo que uma troca de likes no Facebook
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