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Sei lá há quanto tempo que, quando tenho que falar daquilo que se chama "novas tecnologias de informação", já tão velhas como os "jovens" do Komsomol soviético, que insisto à cabeça que não são as tecnologias que mudam as sociedades, mas sim as sociedades que mudam, dando uma determinada utilização às tecnologias disponíveis e transformando-as em instrumentos dessa mudança. São as mudanças sociais que "escolhem" nas tecnologias disponíveis um determinado modo de uso social e depois as moldam na sua capacidade de intervenção. Claro que há alguma "acção recíproca", para usar uma velha terminologia hegeliano-marxista, mas a invenção, existência, conhecimento, disponibilidade de uma determinada tecnologia não gera por si só mudanças sociais profundas. Tem que ter "um tempo", um determinado tempo.
As senhoras empoeiradas da alta sociedade do século XVIII que se divertiam a levar uns choques eléctricos com a garrafa de Leyden, "conheciam" a electricidade, como os interessados pelas máquinas desde a antiguidade sabiam como funcionava a máquina a vapor de Herão de Alexandria, sendo que em nenhum dos casos o conhecimento da tecnologia levou à sua utilização para provocar uma "revolução" tecnológica. O caso da máquina a vapor é um caso paradigmático. Para ter havido a chamada "revolução industrial", foi preciso a conjugação de um conjunto de invenções práticas, como as de Watt, com as mudanças sociais que estavam em curso na sociedade inglesa, no domínio do trabalho mineiro e oficinal, na vinda de crianças e mulheres para trabalharem nas novas fábricas e nas minas, na urbanização acelerada, na diminuição da mortalidade, etc., etc. O processo no seu conjunto levou a ciência e tecnologia dos "gabinetes de curiosidades" do século XVIII para as sociedades de promoção industrial, mas os actores eram socialmente muito distintos, passando dos círculos da nobreza iluminista para os novos burgueses "industrialistas", como Josiah Wedgwood, o da cerâmica.
E, em todos estes momentos de mudança, nas chamadas "revoluções industriais", como aliás noutras nomenclaturas por "idades", proliferaram dois tipos de literatura, a utópica e a distópica, a dos "integrados" e a dos "apocalípticos". Num caso, o mundo novo estaria aí à esquina, com o fim da miséria, da doença, da exploração. Noutros casos, o Inferno teria descido à terra prometendo o Armagedão para as gerações imediatas. E o que se está a passar com a Internet não escapa a esta regra de efeitos e discursos, com um novo surto deste tipo de entusiasmos ou medos, que estão por aí a correr a pretexto das "revelações" da WikiLeaks. E de novo se esquece a regra que penso básica: é a sociedade que muda "usando" a Internet como instrumento dessa mudança, num processo global complexo e contraditório, e não a Internet que muda por si só a sociedade. Mas isto contraria a actual tendência para, no meio de muito deslumbramento tecnológico, esquecer que se está a dar um novo curso a algumas muito velhas ideias da política e da ideologia.
Entre essas ideias está o antiparlamentarismo a favor da "democracia directa", que na Rede seria o equivalente das assembleias "participativas", onde as minorias vanguardistas sempre reivindicaram para si o direito que têm os politicamente "esclarecidos" para governar "directamente", sem passar por essa coisa manipulada e grosseira que é o voto de todos. É isto a que chamam "democracia mediática", que nada tem a ver com a democracia. Este mesmo direito, apresentado como exemplo de um genuíno igualitarismo contra as elites que "manipulam" o povo (e que leva a afirmar ingenuamente que deixaram de o poder fazer porque há Internet e qualquer cidadão enraivecido pode colocar as suas queixas para centenas de milhões de leitores, embora o faça na realidade apenas para os seus companheiros de caixa de comentários), explica também o ataque à mediação, ao conhecimento, ao saber, à especialização, a favor de um valor universal igualitário de todas as opiniões. Este igualitarismo que se legitima numa variante moderna da "psicologia das multidões" promove a mediocridade como norma e está a erodir todo o sistema de mediações sem as quais o tecido da cultura não consegue tapar as pulsões da barbárie.
Outra ideia corrente é uma forma de comunismo primitivo, que considera amoral, anormal e tecnologicamente ultrapassada a propriedade, em particular a propriedade intelectual, e que legitima aquilo a que um velho autor bolchevique chamava a "acumulação socialista primitiva", ou seja, o roubo. No seu conjunto, estas ideias são uma actualização na moda dum radicalismo político "contra todas as fronteiras", a favor de uma espécie de anarquismo difuso que afirma que se for na Rede tudo é permitido em nome da liberdade de expressão, e que na Rede o roubo, a destruição de bens, a calúnia, as operações de intrusão, a violação da privacidade não são crimes, mas actividades legítimas, cuja perseguição configura um atentado contra as liberdades individuais e a igualdade absoluta de todos. O ataque à propriedade intelectual, que está a destruir a indústria discográfica e ameaça a cinematográfica, a aceitação pacífica do insulto e da calúnia nas caixas de comentários, a indiferença perante a violação do segredo em matérias de segurança (refiro-me, por exemplo, à publicação questionável do telegrama americano sobre as instalações estratégicas no mundo, uma verdadeira lista de alvos para o terrorismo), tudo hoje é legitimado.
O Público, por exemplo, num seu título desta semana sobre o assalto de retaliação que alguns hackers fizeram a sites do MasterCard, Visa e PayPal, que cortaram as contas da WikiLeaks, comparava essa actuação com uma "revolta popular online" (o que é uma contradição nos seus termos), e claramente não entendia que legitimar esses ataques informáticos é a mesma coisa que justificar partir vidros a bancos numa manifestação selvagem. Escusado será dizer que o mesmo se aplica aos ataques informáticos contra os sites do WikiLeaks
Entre as poucas excepções de interdições que ainda são admitidas como aceitáveis encontra-se a da pedofilia, mas bem vistas as coisas tal excepção é incoerente com o anarquismo difuso que por aí circula. Mas esse anarquismo é incoerente nos seus próprios pressupostos de que "tudo na Rede é permitido" porque é politicamente orientado. De facto um site de extrema-direita corre muito mais riscos de ataque informático do que se for de extrema-esquerda.
O que se está a passar na Internet só se compreende como o culminar, ou o evoluir, de um processo que desde o século passado está a mudar as democracias ocidentais industrializadas e que corresponde aos efeitos do acesso das grandes massas a diferentes tipos de consumo, não só material, como "espiritual". É matéria sobre a qual já escrevi com mais detalhe noutras alturas, mas era apenas uma questão de tempo até que um ascenso de uma forte pulsão demagógica gerasse uma enorme tensão com os mecanismos das democracias, que implicam para funcionarem um conjunto de mediações de tempo, espaço, reflexão e poder. Estas mediações são tidas como impedimentos inaceitáveis e elitistas para uma espécie de direito universal a tudo possuir, tudo ver, tudo falar, tudo opinar, tudo decidir num tempo curto (e o tempo curto é essencialmente afectivo e não racional), entendido como um empowerment natural e absoluto. E as "novas tecnologias" são um precioso instrumento para esse efeito, fornecem uma igualdade virtual, um anonimato necessário, um voyeurismo absoluto, uma plataforma sem mediações, uma mediocratização do discurso e da imagem, muita impunidade, e um amplificador do imediato, do sensacional, do espectacular, do pathos. Numa palavra só, favorecem a vitória da demagogia sobre a democracia, mas a culpa não é delas.
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