Artigo de Henrique Monteiro no Expresso Diário
Confesso-me pecador e além do mais ignorante, sem capacidade para atingir
as altas escarpas intelectuais daqueles que defendem a ideologia do género. Sou
do género estúpido. Posto isto, e na minha qualidade, que é tão intocável como
a de outro género qualquer, seja LGBTIQ+ e o que mais quiserem pôr, nasci
menino e fui educado como menino. Naturalmente essa repressão feroz exercida
pela família, sociedade e escola, fez-me desembocar, com o passar dos anos
(mais de 60), num velho pai e avô heterossexual. Como já devem ter percebido
por aquilo que aqui escrevi (mas que eu, como estúpido, não tenho a certeza)
sou, quase certamente homofóbico, racista, xenófobo, chauvinista e, claro,
fascista.
Uma das coisas que mais me espanta é ter descoberto, através de um pensador
brasileiro, seguidor de Judith Butler, que os defensores da ideologia do género
não negam a biologia. “Eu nunca li nenhum autor de estudos de género negar a
biologia”, afirma o nosso irmão brasileiro, sublinhando que sabem que os órgãos
são diferentes, assim como o sistema reprodutivo e tudo isso é diferente. O que
os estudos de género dizem, insiste o moço, “é que essas características não
determinam quem somos ou quem devemos ser”. Foi um momento de alívio. Por
momentos, pensei que o meu órgão sexual tinha sido colado ou cosido pela
família, escola ou sociedade. Não, nada disso! Nasci mesmo com ele.
Mas, se nasci com ele, não sou determinado por ele. Posso ser mulher e
escolher um nome de mulher, andar vestido de mulher e sentir-me mulher. Calma…
Isso não será uma disfunção, pergunta o estúpido? Nada disso. O que acontece,
diz Judith Butler é que todo o rapaz efeminado ou toda a rapariga
máscula sofre bullying da sociedade, da escola e da família, de modo que são
ameaçados com psiquiatras, como se não fossem normais. Por isso mesmo, a escola
e a medicina, por exemplo, tudo devem fazer para não distinguir um sexo do
outro (a questão da ginecologia e da urologia torna tudo um pouco mais difícil,
mas adiante).
“O género – insiste Butler – é formado culturalmente, e também uma
imposição à nossa liberdade. É principalmente importante resistir (e legislar,
acrescento eu) a todas as formas que querem restringir o nosso género ao nosso
sexo.” Por isso mesmo, ainda hoje, ativistas desta magna questão acusavam a
Porto Editora do crime de ter livros para meninos e para meninas. Uns azuis e
outros cor-de-rosa. Querem maior atentado ao género? Saltaram os e as
especialistas em discriminação a explicar a gravidade do feito. Infelizmente, a
nossa Comunicação Social esqueceu-se de perguntar a outros sectores, com outras
opiniões, qual a razão do êxito dos livros. Até porque a Editora, não seguindo
as orientações de uma muito democrática ex-professora que proclamou que tais
livros destinados a crianças dos 4 aos 6 anos deviam ser imediatamente
retirados do mercado, insiste em vendê-los e diz que não há discriminação
nenhuma.
O estúpido, claramente estúpido, pensava que bastava não discriminar. Que a
sociedade, a família e a escola respeitassem e ensinassem a respeitar o sexo e
as opções ou tendências de cada um (ontem mesmo uma secretária de Estado
declarou-se homossexual com toda a dignidade).
Infinitas famílias, meus irmãos, sendo que a família, tal como o Natal, é o
que e quando um homem (perdão: um ser, ou uma pessoa) quiser
Mas não – agora que aprendi uma lição com os que chamaram machista a Chico
Buarque (autor de algumas das melhores canções em que a primeira pessoa é uma
mulher) – percebo que não basta não discriminar. É preciso impor às escolas que
deixem de olhar para as crianças como se elas fossem meninos ou meninas e
passá-las (ou melhor, passá-l@s, porque não interessa o género) a ver como
seres totalmente iguais (há ainda por fazer a discussão sobre se as casas de
banho devem manter o estereotipo, sendo ou para homens ou para mulheres, não
integrando a vasta paleta entre os dois géneros, mas adiante).
A família é outro dado. Asseguram-me as altas inteligências que a ideologia
de género não quer acabar com elas. Quer que elas sejam tantas quantas as
possibilidades. Infinitas famílias, meus irmãos, sendo que a família, tal como
o Natal, é o que e quando um homem (perdão: um ser, ou uma pessoa) quiser.
Naturalmente, até o estúpido o reconhece, há um cruzamento entre o sexo
biológico e as opções ou tendências sexuais de cada um que nem sempre são
coincidentes (e são algo do foro íntimo que não deve ser legislado, salvo no
que respeita ao princípio da não discriminação). Coisa diferente é querer impor
uma ideologia que defende que cada ser do género humano, que nasce
biologicamente homem ou mulher, possa definir-se sem interferência dos modelos
tradicionais. Esses modelos, ainda que sejam construções sociais, são
construções sociais naturais - e não impostas por escolas, famílias ou
instituições, mas pela evolução de milhares, senão milhões de anos. A cabeça
das luminárias parece pretender que o mundo começou há 10 anos.
O problema é que em muitos países esta ideologia de género é imposta pelo
Estado. Ora, os seres humanos nascem com sexo biológico (os transtornos hermafroditas
são raríssimos), não nascem com género, como as palavras. E, por falar de
palavras, essa ideologia altíssima quer dominar-nos através delas. Através da
arroba (@) para colocar os dois géneros em palavras que por vezes só têm um
(presidente, estudante, contente, etc.). Através do que se pode dizer e não
dizer sobre as chamadas minorias, ou sobre o que for. Para dizer que Chico
Buarque, por ter escrito numa canção recente: “Quando o teu coração suplicar /
Ou quando teu capricho exigir / Largo mulher e filhos /E de joelhos te vou
seguir” revela que ele ainda está nos anos 70, preso na “assimetria de papéis
entre homens e mulheres”, como escreveu um cronista em “O Globo”.
Enfim, já me confessei estúpido, mas ainda vou percebendo algumas coisas
das que nos andam a fazer.
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