domingo, 2 de dezembro de 2012

As Noivas De Salazar

Artigo de Alberto Gonçalves
 
Não, o principal sintoma do desvario do País não é o de que um orçamento socialista seja aprovado pela maioria dita de direita e criticado a título de "liberal" pela minoria de esquerda. Se houve notícia devastadoramente reveladora daquilo que hoje somos foi a da proibição, pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), de um vinho chamado Memórias de Salazar.
A própria ideia já é feliz. É possível que a autarquia de Santa Comba Dão presuma uma tendência dos enófilos contemporâneos para privilegiar beberagens que celebrem antigos ditadores, ou o desejo dos saudosos do Estado Novo para celebrar a época no berço do respectivo líder e através de almoços regados com um tinto baptizado em sua honra. Em qualquer das hipóteses, o vinho homenageia menos Salazar do que o ridículo.
Em matéria de embaraços, porém, nada chega aos calcanhares da decisão do tal INPI, que inviabilizou a referida marca na convicção de que esta prejudica a "moral" e a "ordem pública". O argumento só se aceitaria se o Memórias de Salazar exibisse um teor alcoólico elevadíssimo, visto que ninguém quer aturar bandos de salazaristas embriagados à solta, a repetir o juramento da Mocidade Portuguesa e a responder aos berros à popular pergunta: "Quem manda?" No que respeita à veneração de tiranos, a tolerância das autoridades para com as violações da moral e da ordem pública está limitada a sujeitos que enverguem T-shirts do "Che" e lencinhos inspirados nos terroristas da Palestina. Por mais que os nostálgicos do 28 de Maio sonhem com o contrário, a verdade é que quem manda em Portugal não trata indiferentemente todas as ditaduras.
É por isso que a variação nos pesos e nas medidas também se reflecte nos nomes que aqui as coisas podem ter. Desconheço se existe um vinho denominado Álvaro Cunhal, mas conheço suficientemente a toponímia indígena, pródiga em Cunhais, Vascos Gonçalves e até Lenines para suspeitar que ninguém de direito interditaria uma pinga cujo rótulo ostentasse a efígie ou a graça do falecido prosélito da URSS ou de um antidemocrata similar. Por um daqueles caprichos em que a Constituição é fértil, a liberdade de expressão dos alegados fascistas não é igual à dos comunistas confessos.
Igualzinha é a obsessão de ambas as seitas: Salazar. Por motivos opostos, tanto o autarca de Santa Comba Dão como os seus adversários na matéria vivem assombrados por um fantasma, imputando-lhe virtudes que nunca possuiu ou culpas que há muito caducaram. Uns e outros lembram a proverbial noiva que, meio século decorrido, ainda espera o noivo que a abandonou no altar - para consumar a cerimónia ou terminá-la aos tiros. Os convidados partiram, o tempo passou, as teias cobriram o bolo, o vestido é um farrapo. E o noivo não volta: Salazar não nos resgatará da penúria vigente nem é responsável por ela. Em 2012, convinha que alguém informasse a pobre velhinha. Ou velhinhas, que são muitas.

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