Artigo de Alberto Gonçalves
Não, o principal sintoma do desvario do País não é o de que um orçamento
socialista seja aprovado pela maioria dita de direita e criticado a título de
"liberal" pela minoria de esquerda. Se houve notícia devastadoramente reveladora
daquilo que hoje somos foi a da proibição, pelo Instituto Nacional de
Propriedade Industrial (INPI), de um vinho chamado Memórias de Salazar.
A própria ideia já é feliz. É possível que a autarquia de Santa Comba Dão
presuma uma tendência dos enófilos contemporâneos para privilegiar beberagens
que celebrem antigos ditadores, ou o desejo dos saudosos do Estado Novo para
celebrar a época no berço do respectivo líder e através de almoços regados com
um tinto baptizado em sua honra. Em qualquer das hipóteses, o vinho homenageia
menos Salazar do que o ridículo.
Em matéria de embaraços, porém, nada chega aos calcanhares da decisão do tal
INPI, que inviabilizou a referida marca na convicção de que esta prejudica a
"moral" e a "ordem pública". O argumento só se aceitaria se o Memórias de
Salazar exibisse um teor alcoólico elevadíssimo, visto que ninguém quer aturar
bandos de salazaristas embriagados à solta, a repetir o juramento da Mocidade
Portuguesa e a responder aos berros à popular pergunta: "Quem manda?" No que
respeita à veneração de tiranos, a tolerância das autoridades para com as
violações da moral e da ordem pública está limitada a sujeitos que enverguem
T-shirts do "Che" e lencinhos inspirados nos terroristas da Palestina. Por mais
que os nostálgicos do 28 de Maio sonhem com o contrário, a verdade é que quem
manda em Portugal não trata indiferentemente todas as ditaduras.
É por isso que a variação nos pesos e nas medidas também se reflecte nos
nomes que aqui as coisas podem ter. Desconheço se existe um vinho denominado
Álvaro Cunhal, mas conheço suficientemente a toponímia indígena, pródiga em
Cunhais, Vascos Gonçalves e até Lenines para suspeitar que ninguém de direito
interditaria uma pinga cujo rótulo ostentasse a efígie ou a graça do falecido
prosélito da URSS ou de um antidemocrata similar. Por um daqueles caprichos em
que a Constituição é fértil, a liberdade de expressão dos alegados fascistas não
é igual à dos comunistas confessos.
Igualzinha é a obsessão de ambas as seitas: Salazar. Por motivos opostos,
tanto o autarca de Santa Comba Dão como os seus adversários na matéria vivem
assombrados por um fantasma, imputando-lhe virtudes que nunca possuiu ou culpas
que há muito caducaram. Uns e outros lembram a proverbial noiva que, meio século
decorrido, ainda espera o noivo que a abandonou no altar - para consumar a
cerimónia ou terminá-la aos tiros. Os convidados partiram, o tempo passou, as
teias cobriram o bolo, o vestido é um farrapo. E o noivo não volta: Salazar não
nos resgatará da penúria vigente nem é responsável por ela. Em 2012, convinha
que alguém informasse a pobre velhinha. Ou velhinhas, que são muitas.
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