segunda-feira, 21 de maio de 2018

Portugal, Terra De Fé

Alberto Gonçalves no Observador


Após a desilusão com um ex-governante, inúmeros portugueses resolveram desiludir-se em simultâneo com um dirigente da bola. Há nisto o respeito por diversas tradições pátrias. A tradição de seguir fervorosamente determinadas fraudes. A tradição de reagir com ameaças e fúria aos avisos de que a fraude é obviamente uma fraude. A tradição de admitir a fraude, de repente e com anos de atraso. Como o bêbado que, já na cama do hospital, tenta travar para não bater no poste, o discernimento dos portugueses raramente falha: demora é uma eternidade a chegar.
Também é ridículo presumir que as pessoas veneram qualquer fraude: só as demasiado evidentes. Os profetas duvidosos não são connosco. Preferimos profetas espalhafatosamente toscos, ou fancaria autenticada. Se um tipo com ar vagamente alucinado, gramática deficitária, promessas épicas e conversa fiada irrompe na cena pública, muitos contemplam o espectáculo e decidem que, sim senhor, está ali alguém a ter em conta. Quando, em dez minutos, se torna notório que o tipo é um rematado trafulha, a adoração e as ofensas aos descrentes aumentam em proporção directa. Quando, além da trafulhice, o tipo acentua os vestígios de loucura, os fiéis encontram-se capazes de morrer por ele, e sobretudo de matar por ele. Na fase em que o tipo começa a descer o Chiado vestido de Napoleão, embora troque o exílio em Elba por uma conta em Barbados, o séquito entra em transe espiritual.
Um dia, pouco antes de ingerir o cianeto que o profeta generosamente providenciou, dá-se uma epifania colectiva, o culto abre os olhos e percebe que fora enganado por um reles farsante. Desalentados, e sem pingo de vergonha, os membros do culto percorrem a via sacra das televisões, dos jornais e do Facebook a confessar o logro em que, coitadinhos, caíram. Por um triz não pedem indemnizações por danos morais.
As características dos profetas caseiros, que depois de longa reverência frequentemente desce ao carisma da lepra, incluem um vasto rol de qualidades: são desonestos nas contas, falsos na palavra, escorregadios no carácter, egocêntricos, avessos à dissidência, convictos, teimosos, ignorantes, infantis, incapazes de empatia e capazes de, no aperto, arrastar com eles o que existir em redor – o termo técnico é doidos perigosos. Às vezes, acumulam as qualidades todas; às vezes, só algumas. Quanto às características dos fiéis, o espectro é reduzido: ou são inacreditavelmente oportunistas ou inacreditavelmente idiotas. Donde a tendência para os fiéis saltitarem entre profetas. Em geral, mal terminam de ser ludibriados por um (ou uma dúzia), atiram-se para o seguinte (ou seguintes) com alma lavada e cara-de-pau. O seguinte, mais um maluco sem escrúpulos, é que é o tal e quem disser o contrário arderá nos infernos.
O engraçado não é que a História de Portugal, na política, na diplomacia, na universidade, na economia, no futebol, na filatelia e no que calha, seja uma sucessão irrepreensível de crenças assim. O engraçado é que continua a ser. Em Maio de 2018, época em que, suponho, restam escassos devotos do “eng.” Sócrates e do sr. Bruno, não escasseia o convencimento de que outros pantomineiros possuem as aptidões adequadas a conduzir-nos rumo à felicidade, ainda que os factos sugiram o exacto oposto. Dois ou três desses espécimes apareceram em ambos os apedrejamentos recentes, e, embora apeteça sonhar com o deles, pressente-se que não vale a pena: por morrer um intrujão, não acaba Portugal. Aliás, o problema é esse.

Notas de rodapé


1. Face aos acontecimentos de Alcochete ou Alfragide, o dr. Costa tomou as providências devidas e anunciou uma Autoridade Contra a Violência no Desporto. Em primeiro lugar, fica claro que quando um gangue invade propriedade alheia e comete espancamentos, o exercício é de carácter desportivo (excepto, como lembrou o meu amigo Hélder Ferreira, se o gangue for de “etnia” cigana e a propriedade um hospital: nesse caso o assunto nem chega a ser violento nem é assunto). Em segundo lugar, saúda-se que finalmente haja punições para a barbárie no sector, lacuna legal que até aqui permitia a relativa impunidade de quem matava adeptos com petardos, automóveis ou penáltis transviados. Em terceiro lugar, espera-se que os castigos se estendam aos populistas em cargos públicos que condenam a selvajaria da bola e de seguida assistem a jogos ao lado dos respectivos responsáveis. Certo é que o dr. Costa esteve impecável.
2. Uma consequência positiva do drama “sportinguista” é a exclusividade informativa, que retirou das notícias as “reportagens” sobre a embaixada americana em Jerusalém e a má vontade israelita em não se deixar exterminar pelos seus indefesos vizinhos. Aquilo é gente ruim. Como lembrava Serge Gainsbourg, quem afundou o Titanic foi Iceberg – sempre um judeu.
3. Virar a página da austeridade é um processo complexo e permanente. Implica, por exemplo, subir a cada semana o preço dos combustíveis, além de aumentar outros impostos conhecidos e criar alguns novinhos em folha. É curioso que a receita para o sucesso se confunda tanto com um fracasso – e um roubo sem precedentes. Felizmente, é para isso que existem os “media”: para evitar confusões.

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