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A uma semana da cimeira da NATO, Lisboa enche-se de inscrições, cartazes, murais contra a organização. Alguns dos cartazes são em inglês e alemão, o que mostra internacionalização do protesto. Na sua maioria, as inscrições são do PCP e de alguns dos seus avatares criados para a ocasião, e do Bloco de Esquerda cujas posições merecem alguma atenção mais à frente. O resto provém de alguns grupos esquerdistas ínfimos, como aqueles ligados à Internacional de que faz parte o POUS. Com a ignorância habitual, a televisão deu a estes pequenos e insignificantes grupos portugueses o papel de espantalhos para meter medo, certamente com informações sopradas para justificar as despesas com a segurança pela central de contra-informação que actua junto do Governo. Fossem apenas estes os participantes no mais que legítimo direito democrático de protestar, e pouco mais poderia haver do que alguns incidentes isolados, ou nem isso. Mas não é assim.
No plano internacional já a coisa fia mais fino, porque há grupos especializados e profissionalizados em criar tumultos nestas ocasiões, não por a cimeira ser em Lisboa, um país irrelevante para eles, mas por virem cá os grandes do mundo e uma coorte de jornalistas. Muita televisão, muitos jornais, muitas agências, logo grande cobertura mediática, o isco para pequenos grupos violentos que fazem este turismo caro da pancadaria anti-capitalista, anti-imperialista, antimilitarista, anti-etc. Um autocolante em inglês de um grupo "antifascista" alemão, colado nas ruas de Lisboa, mostra uma velha camponesa a "fazer o dedo", e tem uma legenda significativa; "Fuck off!" os "racistas, fascistas, anti-semitas, suprematistas da espécie ("speciesists"), sexistas, homofóbicos, nacionalistas e patriotas". Como catálogo dos inimigos não está mal, incluindo a luta contra os "speciesists", uma palavra difícil de traduzir, mas que denota a vinda de um grupo de gente muito radical que promete fazer a vida negra aos donos dos aviários, para combater os preconceitos contra as espécies não humanas...
Estes grupos anarquistas (uma designação que utilizo pelo costume habitual, mas que é pouco rigorosa) e esquerdistas, alguns com história conhecida de protestos violentos, prometem animação. Alguma sarrafusca haverá, mas espero que a nossa polícia não seguirá as práticas mansas que tem com as claques, mesmo desprovida das viaturas antimotim que deviam vir a tempo e não vieram, e que quando vierem vão gloriosamente apodrecer no mesmo armazém que deve ter os equipamentos de protecção antinuclear que o engenheiro Guterres comprou em plena histeria do "urânio enriquecido". Estas histórias de sumo ridículo são mais uma contribuição dos nossos incapazes governantes para ajudar a deslegitimar uma organização de que Portugal faz parte e cujo destino devia tomar muito a sério.
Os veteranos do combate contra a NATO e aqueles que vão dar o grande contingente de rua (e o mais pacífico) são os comunistas. Os bloquistas vão ter um pé nos dois grupos, um na massa pacífica dos herdeiros da geoestratégia da URSS, outro nos grupos mais agressivos. Mas os comunistas levarão à rua uma curiosa contradição que revela o peso da história e da tradição (o PCP é uma das mais conservadoras organizações da vida política portuguesa) e a sua incongruência com as realidades contemporâneas, a começar pela suprema ironia de ver o descendente directo do "sol na terra", sob a forma do Presidente Medveded, a participar numa cimeira da NATO, descendo na Portela num avião com a bandeira de Pedro, o Grande. Os comunistas, quer a organização-mãe, quer as sobrevivências do mundo póstumo do internacionalismo pró-soviético, como esse curioso Conselho Português para a Paz e a Cooperação, muito anos financiado pela URSS, e que não era nem português, nem pacífico, nem cooperante, transportam para as ruas de Lisboa o mundo orwelliano das últimas abencerragens da política externa soviética, agora sem URSS.
O que ficou dessa geoestratégia soviética foi um forte antiamericanismo que se dissolveu em múltiplas versões menores, em particular no novo esquerdismo antiglobalizador que cresceu com o desastre do Iraque e com as dificuldades do Afeganistão. Esse antiamericanismo global acaba por ser também o terreno natural em que se coloca o Bloco de Esquerda, herdeiro de outras tradições do movimento comunista, como a da IV Internacional e a do maoísmo, irmanadas também elas nesse mesmo manto de causas difusas, agora sem guia nem vanguarda. Nesse sentido há pouca autonomia real do Bloco de Esquerda em relação à posição de orfandade do PCP, apesar de uma retórica que tenta a diferenciação através de uma valorização de causas e de direitos que nenhum papel tinha na subserviência face à URSS da posição comunista.
Quem combatem todos estes grupos? A única organização armada que é hoje constituída na sua esmagadora maioria por democracias. Nem sempre foi assim no tempo da guerra fria e concedo que não o possa ainda ser inteiramente, para deixar em aberto o caso especial da Turquia, de qualquer modo muito mais democrática do que a plêiade dos mais virulentos opositores da NATO como Cuba, a Venezuela e a Coreia do Norte. A NATO venceu a guerra fria ao Pacto de Varsóvia e foi o instrumento fundamental para travar o expansionismo soviético na Europa do pós-guerra, mantendo uma força de dissuasão permanente que impediu a URSS de ultrapassar os seus já ilegítimos domínios nos países do Centro e Leste da Europa e a ocupação dos países bálticos.
Porém, terminada a guerra fria, que papel pode ter a NATO? Esta é a questão que mais uma vez estará presente na actual revisão do conceito estratégico da NATO, numa altura em que esta está presente no mais complexo teatro de guerra mundial, o Afeganistão. O complexo processo de encontrar um novo consenso sobre as regras de intervenção da organização num mundo pós-guerra fria, para além da regra da defesa colectiva dos seus membros, incluindo as novas parcerias de segurança, a mais importante das quais é com a Federação Russa, não pode, no entanto, esconder uma realidade nua e crua. É que sem a NATO o mundo fica muito mais perigoso e inseguro. Mesmo que desaparecesse a ONU, os riscos para a segurança mundial seriam maiores, se as democracias perdessem a sua organização de defesa e segurança. E é por isso que o papel dos EUA, a única verdadeira democracia armada que subsiste no mundo, é crucial. Também por isso se compreende que o antiamericanismo esteja no âmago da luta anti-NATO que andará à solta pelas ruas de Lisboa.
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