quinta-feira, 1 de abril de 2010

Viver Mais, Trabalhando Menos: E Quem Paga ?

Artigo de Miguel Sousa Tavares
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No dia 10 de Março, o primeiro-ministro grego, George Papandreou, assinava um artigo no "New York Times" onde apelava aos países desenvolvidos para porem de pé "uma nova arquitectura financeira" cujo impacto fosse comparável ao dos acordos de Bretton Woods. Tendo tomado posse em Outubro, Papandreou foi encontrar um país acossado por um défice de 12,7% do PIB e uma dívida pública de 120% - o resultado de décadas de laxismo, esbanjamento de dinheiros europeus e até, como agora se descobriu, de batota nas contas públicas. Não teve outro remédio que não fosse adoptar a correr medidas draconianas (o termo é bem apropriado...), entre as quais a cativação do 13º mês (onde é que já vimos isto?).
Para maior azar de Papandreou, no dia seguinte, o mesmo jornal trazia uma reportagem sobre a contestação de rua, em Atenas, às suas medidas, onde se registava a opinião de uma jovem de 26 anos, declarando que, em caso algum, aceitaria que prolongassem a sua idade de reforma, prevista para os 50. Porque, explicava ela, a sua profissão estava considerada por lei como de "desgaste rápido", o que lhe conferia também direito a uma reforma rápida. E qual era a profissão dela? Cabeleireira. É uma das 280 profissões ou trabalhos a que a lei grega reconheceu o estatuto de 'desgaste rápido', em consequência de sucessivas cedências às reivindicações sindicais.
Nessa mesma semana, Papandreou esteve em Berlim, onde ouviu da chancelerina Merkel o que não queria. Há quem diga que a Alemanha poderia fazer mais, não só pela Grécia e pelos restantes PIGS mas também pela retoma em toda a zona euro: bastaria que se deixasse de tantas poupanças e abrisse as suas fronteiras um pouco mais às importações. Os alemães serão assim culpados de pouparem enquanto os outros gastam, de se preocuparem demasiado com as boas e velhas regras de disciplina financeira que herdaram dos gloriosos tempos do marco - e que não pretendem sacrificar para defender o euro, enfraquecido pelos maus hábitos de povos e governos como o grego. Com certeza que a crise está longe de estar ultrapassada e exige uma reflexão e uma correcção de rumo que ainda não foi feita - a crise representou a morte inadiável deste capitalismo, à escala global. Mas o que agora se discute é a sobrevivência do Estado social - que já estava ameaçado antes da crise e está mais ainda depois dela, com as economias descapitalizadas e os Estados endividados.
Por diversas razões, que agora não vêm ao caso, eu acho que, aqui, como no resto, a Europa nunca tem sido justa com a Alemanha e nunca reconheceu suficientemente o esforço que a Alemanha tem feito em defesa da Europa e na manutenção de pontes entre o Leste e o Oeste, entre o Mediterrâneo (incluindo a Turquia) e o Norte. Talvez se perceba isso melhor quando se vê uma imigrante turca de Berlim (onde 20% dos habitantes são imigrantes) atirar para o chão, displicentemente, o embrulho do cachorro acabado de comprar. Numa cidade estimada pelos seus habitantes, limpa e onde tudo funciona, que custou milhões aos pagadores de impostos para se unificar e reconstruir depois do Muro, o gesto é uma ofensa que dá que pensar.
Nessa semana, por coincidência, eu também estava em Berlim e percebi bem por que razão 90% dos alemães não querem ajudar a Grécia a sair do buraco onde se enfiou e chegam até à ironia de perguntar se, em alternativa, os gregos não quererão antes vender algumas ilhas. Como me explicou um alemão, "Papandreou representa um país onde toda a gente tem direito a 13º e 14º mês e onde a idade de reforma nunca vai além dos 60 anos. E vem-nos pedir dinheiro a nós, esquecendo-se que aqui não há direito legal a 13º e 14º mês e a idade de reforma já vai nos 67 anos".
Esta semana, vi na televisão imagens das manifestações em França contra as medidas de austeridade do Governo Sarkozy - também ele com défices excessivos e repetidos. Um manifestante, fora de si, explicava o que o movia: "Ele quer que eu trabalhe até aos 60 anos, mas eu não aceito. Não aceito!" Nunca, explicava o "L'Express" há uns tempos, houve duas gerações de reformados tão privilegiadas como as duas gerações de franceses que se reformaram desde o boom dos anos cinquenta. Mas, há 50 anos, a esperança de vida era de 60 anos para os homens e 62 para as mulheres e hoje vai em 75 e 83 (em Portugal). A nova geração de franceses e não só, os herdeiros privilegiados do Estado social europeu, querem o mesmo que viram os seus pais e avós terem: anos despreocupados, a viajar pelo mundo em cruzeiros e a alugar casas de férias no Algarve ou na Tunísia, com o dinheiro da reforma. A diferença é que dantes o Estado sustentava-os assim durante cinco a dez anos e hoje tem de os sustentar 15 a 20. E amanhã terá de os sustentar 20 a 30 anos e cada vez com mais despesas de saúde. É verdade que há mais dinheiro, mas não chega: está escrito que uma progressão aritmética jamais conseguirá acompanhar uma progressão geométrica. E essa é uma das principais razões pelas quais os Estados se endividam.
Em Portugal, desde a reforma (a primeira a sério!) do regime financeiro da Segurança Social, levada a cabo há três anos, multiplicaram-se os pedidos de reforma antecipada entre os servidores públicos. Dizem-nos que já faltam médicos e professores e que muitos outros serviços públicos estão desfalcados, porque as pessoas preferem perder parte da pensão com a reforma antecipada a terem de enfrentar o factor de sustentabilidade introduzido no cálculo das pensões e a extensão progressiva da idade da reforma até aos 65 anos. Conheço várias pessoas, na casa dos 50 anos, que estão reformadas e aparentemente tranquilas, imaginando-se a salvo. Não tenho isso por garantido: por cada um que deixou de trabalhar antes dos 60, há outro que continua a trabalhar depois disso e bem mais - ou o primeiro não podia estar reformado. Mas se o segundo resolver reformar-se aos 65 anos, por exemplo, terá de haver um terceiro que continue a trabalhar até aos 68, para ajudar a pagar as reformas dos outros dois. E assim sucessivamente, numa equação em que cada vez há menos gente a trabalhar para sustentar mais inactivos, até que o sistema comece a entrar em ruptura. Antes disso, e não encontrando condições políticas para impor a subida gradual da idade da reforma, restam aos Estados duas alternativas: ou aumentar mais ainda os impostos dos activos ou endividar-se para pagar a factura. São essas duas coisas que temos vindo a fazer progressivamente. Com a agravante de ter de sustentar também um exército de desempregados que a fraca produtividade da nossa economia não absorve e do custo cada vez maior de um serviço público de saúde universal, tendencialmente gratuito e absolutamente auto-insustentável. E isto, claro, para não falar no despesismo irresponsável do Estado e no esbanjamento de dinheiros públicos em projectos para além da nossa capacidade e até, por vezes, da nossa necessidade, com o objectivo confesso de apoiar uma "iniciativa privada" que não sobrevive sem apoio público. Mas isso, apesar de tudo e face à 'factura social', é a parte menor dos nossos défices e da nossa dívida.
Este é o nosso problema de fundo, que este PEC não resolve nem resolverá nunca, enquanto o próprio problema e a sua dimensão não forem entendidos por todos. Há milhares de pessoas desesperadas por um emprego, um qualquer, que não encontram; há ainda uns milhares que não fogem ao fisco, não metem falsas 'baixas' e não se queixam de ter que trabalhar; e há uns milhares que já entenderam que, muito provavelmente, irão ter zero de reforma, quando lá chegarem. Porque a vida é assim mesmo, não se pode ter tudo eternamente: deixar de trabalhar aos 60 e viver até aos 80, sustentado pelo dinheiro dos outros. Mas, ao lado destes, há uns milhões que não querem entender nem saber de números e que acreditam que nada de essencial mudou e que o Estado tem de garantir tudo o que lhes garante a épica Constituição escrita há 34 anos. E que, em última análise, não querem saber de dívida, nem de défice, nem de outras considerações 'economicistas'. Porque, acreditam eles, se for preciso, não se paga a dívida. E quem paga, então? Talvez a Alemanha.

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