quinta-feira, 14 de abril de 2022

A Viúva De Uma Pessoa

Artigo de Ricardo Araújo Pereira publicado na Revista do Expresso no passado dia 8

O acontecimento literário do ano foi o momento em que o presidente do Eurogrupo disse que tinha estado em Portugal com a viúva de Pessoa. Quem despachou a ocorrência com uma gargalhada perdeu a oportunidade de reflectir sobre uma declaração tão cheia de subentendidos que não sei se é possível captá-los todos. Em primeiro lugar, devemos recordar o célebre verso, escrito por um elemento daquela equipa que costumamos designar por “Fernando Pessoa”: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?” Sempre pensei que Álvaro de Campos estava apenas a ser implicativo: ninguém queria saber do seu estado civil, julgava eu. Afinal, sempre há quem queira vê-lo casado. E logo o presidente do grupo que reúne os ministros das Finanças da zona euro, de quem mais depressa esperaríamos que quisesse ver o poeta tributável. Sendo Fernando Pessoa, na verdade, um colectivo, haveria muita gente para taxar.

Em segundo lugar, o caso deu origem a uma injustiça pesada. Muita gente condenou Fernando Medina por não ter corrigido o presidente do Eurogrupo. Devia ter dito imediatamente que aquele encontro com a viúva de Pessoa não poderia ter ocorrido, uma vez que o poeta nunca tinha casado. O que significa que Medina, coitado, nunca acerta: se fornece dados privados a autoridades estrangeiras é criticado; se não fornece é mais criticado ainda. Não é fácil agradar a esta gente.

O terceiro aspecto interessante é o seguinte: rapidamente se descobriu que o presidente do Eurogrupo não tinha estado com a viúva de Pessoa, mas sim com a viúva de uma pessoa. E que essa pessoa era José Saramago. A excitação com que ele descreve o encontro é um tanto suspeita. “Foi um dia fantástico”, disse ele. Mas a razão pela qual lhe agradou tanto estar com a viúva de Saramago não é clara. Gostou de estar com a mulher que conviveu com o escritor, ou com a mulher que já não convive com o comunista? A viúva recordou-lhe a vida do autor de grandes obras ou a morte do grande crítico do euro? O motivo da alegria é o amor à literatura ou à moeda única? É um daqueles mistérios literários que ficará para sempre. 

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