Artigo de Ricardo Araújo Pereira publicado na Revista do Expresso no passado dia 8
O acontecimento literário do ano foi o momento em que o presidente do Eurogrupo disse que tinha
estado em Portugal com a viúva de Pessoa. Quem despachou a ocorrência com uma
gargalhada perdeu a oportunidade de reflectir sobre uma declaração tão cheia de
subentendidos que não sei se é possível captá-los todos. Em primeiro lugar,
devemos recordar o célebre verso, escrito por um elemento daquela equipa que
costumamos designar por “Fernando Pessoa”: “Queriam-me casado, fútil,
quotidiano e tributável?” Sempre pensei que Álvaro de Campos estava apenas a
ser implicativo: ninguém queria saber do seu estado civil, julgava eu. Afinal,
sempre há quem queira vê-lo casado. E logo o presidente do grupo que reúne os
ministros das Finanças da zona euro, de quem mais depressa esperaríamos que
quisesse ver o poeta tributável. Sendo Fernando Pessoa, na verdade, um
colectivo, haveria muita gente para taxar.
Em
segundo lugar, o caso deu origem a uma injustiça pesada. Muita gente condenou
Fernando Medina por não ter corrigido o presidente do Eurogrupo. Devia ter dito
imediatamente que aquele encontro com a viúva de Pessoa não poderia ter
ocorrido, uma vez que o poeta nunca tinha casado. O que significa que Medina,
coitado, nunca acerta: se fornece dados privados a autoridades estrangeiras é
criticado; se não fornece é mais criticado ainda. Não é fácil agradar a esta
gente.
O terceiro aspecto interessante é o seguinte: rapidamente se descobriu que o presidente do Eurogrupo não tinha estado com a viúva de Pessoa, mas sim com a viúva de uma pessoa. E que essa pessoa era José Saramago. A excitação com que ele descreve o encontro é um tanto suspeita. “Foi um dia fantástico”, disse ele. Mas a razão pela qual lhe agradou tanto estar com a viúva de Saramago não é clara. Gostou de estar com a mulher que conviveu com o escritor, ou com a mulher que já não convive com o comunista? A viúva recordou-lhe a vida do autor de grandes obras ou a morte do grande crítico do euro? O motivo da alegria é o amor à literatura ou à moeda única? É um daqueles mistérios literários que ficará para sempre.
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