quinta-feira, 23 de abril de 2020

“Read My Lips”? Uma Resposta A António Costa

Artigo de David Dinis

As palavras foram escolhidas com pinças. Quando teve que falar pela primeira vez em austeridade, no programa de Manuel Luís Goucha, na TVI, António Costa escolheu os verbos a dedo: disse que espera" e quer "evitar" austeridade. A Liliana Valente anotou as expressões logo, num texto aqui no Expresso: “A primeira formulação é a de ‘esperar que a austeridade não entre na vida dos portugueses’. A segunda a de ‘evitar’. ‘Temos de evitar a todo o custo ter austeridade, não ajudaria, só complicaria’, disse.”

Foi assim que nasceu a pergunta que levámos a São Bento, para fazer ao primeiro-ministro. A pergunta a que ele não queria responder. “Na última semana perguntaram-lhe sobre se admite que venha a ser necessário aplicar medidas de austeridade. Escolheu sempre as palavras “espero que não”, “evitar”…
O primeiro-ministro interrompeu a pergunta a meio, para vincar o que sabemos: que não quer austeridade (algum chefe de Governo alguma vez quis?). Mas à nossa insistência abriu os verbos, respondendo com uma pergunta que era, na verdade, uma resposta: “Lembra-se da sua pergunta anterior sobre a incerteza?”

Nós lembrávamo-nos, sim. E como já antevíamos que António Costa não tinha muita vontade de responder (algum chefe de Governo alguma vez quis?), também levávamos uma nova pergunta: “Ia perguntar se não estamos na circunstância do ex-Presidente dos EUA, que respondeu a uma pergunta assim dizendo ‘read my lips’”. E, para nossa surpresa, António Costa respondeu com realismo: “[Risos] Pode ler à vontade o que está nos meus lábios [sorriso]. Mas já ando nisto há muitos anos para não dar hoje uma resposta que amanhã não possa garantir.”
No fim desta resposta acabou a entrevista. Ficou tudo muito claro: o chefe de Governo acha que aplicar medidas ditas de austeridade no fim desta crise (a sanitária e a económica) seria um erro; mas o primeiro-ministro também sabe que o futuro não está inteiramente nas suas mãos.
Foi assim que nasceu o título da edição de sábado. ("Austeridade? 'Não dou uma resposta que amanhã não possa garantir', diz Costa"). Título esse que o mesmo António Costa ontem quis desmentir no plenário do Parlamento. Ficou para a ata registar, de Expresso na mão: “Os títulos não sou que escrevo. A resposta que aqui está [no título que o Expresso fez] responde a outra pergunta”.

Só que não é verdade.

Esqueça o teatro político, isto é muito a sério: se leu com atenção a sequência de perguntas e respostas que acima lhe descrevi e que ontem republicámos com áudio incluído (para a ata registar), perceberá que o “read my lips” não era uma pergunta sobre outra coisa, como António Costa quis fazer parecer. Era uma pergunta sobre se ele, primeiro-ministro, se sente em condições de garantir uma coisa (que não aplicaria austeridade) que depois não tivesse de quebrar a promessa.
Daí o “read my leaps da pergunta”. A nossa referência a George Bush (pai) não era inocente: o ex-Presidente dos EUA prometeu com essas palavras que não aumentaria impostos (“no more taxes”) durante a sua primeira campanha eleitoral, mas a realidade levou-o a quebrar a promessa. Na campanha seguinte todos cobraram a George Bush a promessa que não cumpriu. Bush perdeu a corrida à recandidatura - o único presidente americano em muitas décadas a quem isso aconteceu.
Agora, a promessa é de António Costa. "Austeridade foi uma má ideia e seria uma má ideia. Espero que seja a última vez que tenha de esclarecer”, disse ontem no Parlamento.
Ficou na ata também. Ele, que anda cá há muitos anos (como ele diz), sabe que o tempo lhe pode vir a cobrar a promessa.
Vamos ser claros: é evidente que a questão da austeridade não se colocará agora. Portugal, como todos os países do mundo, ainda está na primeira fase de resposta à pandemia. Depois, virá a tentativa de recuperação da economia - e essa, todos concordam, exigirá despesa e investimento. Muito.
O problema é que, sem a vacina à mão, a recuperação da economia será lenta. E cheia de incertezas. Sejam sobre uma segunda vaga (e o medo que isso criará nos investidores e empresários), seja sobre a capacidade da Europa em responder unida, assumindo em conjunto os custos do que aí vem. O debate sobre as coronabonds é o reverso da discussão sobre a austeridade: todos queremos que venham (mas ninguém pode contar com ela).
O facto é que as dívidas dos países vão disparar (135% este ano em Portugal, diz o FMI), e para países como Portugal isso é uma camisa de forças. Nós, que ainda há poucos anos passámos por isso, sabemos bem o custo.
Não sabemos como vai ser, mas sabemos que um dia chegará o problema. “Também há amanhã”, dizia sabiamente, na entrevista ao Expresso, o mesmo António Costa que agora jura que não haverá austeridade. O mesmo que dizia, também no sábado, que “a despesa de hoje são impostos de amanhã”.
O problema, agora, é este: até sábado, sabíamos que António Costa não queria ter de aplicar qualquer medida de austeridade, mas que estava consciente que a “incerteza" não lhe permitia fazer promessas. Agora já não sabemos outra vez.
E este é um problema de confiança (“Já ando nisto há muitos anos para não dar hoje uma resposta que amanhã não possa garantir. E acho que há um fator fundamental para sairmos desta crise, que é mantermos confiança. E a confiança tem de assentar em todos percebermos qual é o grau de incerteza em que vivemos e qual é o grau de compromisso que podemos assumir”, afirmava o próprio Costa ao Expresso).
Mas também é uma relevante questão política: nós sabemos que António Costa tem uma maioria política para investir e subir a despesa, mas não sabemos se tem uma para a apertar.
Assim, ficaremos com aquela pergunta em aberto: todos esperamos que, desta vez, tudo seja diferente, mas se tiver de ser, António Costa sai?
Read my lips?




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