segunda-feira, 31 de março de 2008

Dois Artigos de João Pereira Coutinho

COMITÉ OLÍMPICO INTERNACIONAL
A hipocrisia é o meu vício preferido. Basta olhar para o "caso chinês", a poucos meses dos Jogos Olímpicos de Pequim: do presidente do Parlamento Europeu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês, sem esquecer a sra. Nancy Pelosi em visita ao Dalai Lama, não faltam por aí almas beneméritas que tencionam boicotar o circo ou, no mínimo, não pôr os pés na cerimónia de abertura. Coisa bizarra. Primeiro, porque ninguém está seriamente interessado em arranjar sarilhos com Pequim, um parceiro comercial considerável. E, depois, porque as patifarias do regime não começaram bruscamente na semana passada. A China é uma ditadura há seis décadas. A ocupação do Tibete já dura há meio século. E se o problema é o Darfur, ou seja, a venda de armas do regime chinês a Cartum e o bloqueio permanente nas Nações Unidas que impede qualquer sanção contumaz sobre o Sudão, o cenário também não começou ao pequeno-almoço: desde a década de 90 do século passado que a China, a troco de petróleo, fecha os olhos às matanças africanas. Sem falar do resto: os milhões de seres humanos que Pequim enfiou em "campos de trabalho". E, já agora, os milhares que fuzila todos os anos por "delito de opinião", esse crime admirável que, pelos vistos, nunca tirou o sono aos humanistas.

A indignação é hipócrita e, naturalmente, tardia. A existir, ela devia ter sido ouvida quando o Comité Olímpico Internacional resolveu premiar uma ditadura com os Jogos. Não que o caso seja absolutamente inédito: se esquecermos, por motivos grotescos, a Alemanha nazi de 1936, teremos sempre Moscovo, em 1980, que celebrava o espírito humanista do barão de Coubertin ao mesmo tempo que marchava pelo Afeganistão adentro. E quando, em Munique, 11 atletas israelitas eram massacrados pelo terrorismo palestiniano, não passou pela cabeça de ninguém desmontar a tenda. O que valem 11 judeus?

As páginas olímpicas são páginas de vergonha moral. Não começaram agora. Não vão acabar agora. Tanto barulho para quê?
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BÁRBAROS
Num dos seus melhores aforismos, conta Cioran que Alarico, o rei dos visigodos, resolvera invadir Roma porque sentira um "demónio" dentro dele. A frase é tão boa que o filósofo romeno não resiste à conclusão: todas as civilizações exaustas esperam pelo seu bárbaro; e todos os bárbaros esperam pelo seu "demónio". Curiosamente, fiquei a ruminar nesta pérola quando uma aluna portuense agredia a professora nas televisões.
As imagens são conhecidas: depois de a docente lhe ter retirado o telemóvel, a aluna saltou para cima da senhora e a turma filmou e aplaudiu a cena. Menos conhecidas são as reacções às imagens, produzidas por "especialistas" e tarados diversos que procuraram "explicar" o inexplicável. Para alguns, o problema recaía inteiramente nos pais, que já não sabem educar a prole como antigamente. Mas, para a maioria, o problema estava na escola e, claro, nos professores. "Visivelmente, a professora não estava preparada para lidar com situações daquelas", acusava, indignado, um senhor psicólogo, que devia ser imediatamente despromovido a paciente.
Mas o momento áureo aconteceu com uma pedopsiquiatra, que ofereceu na televisão a explicação que faltava: para um adolescente dos nossos dias, o telemóvel não é simplesmente um telemóvel. "É um prolongamento do próprio corpo", acrescentou a profissional (sem se rir). Presume-se, assim, que retirar o telemóvel a uma aluna que persiste em usá-lo durante a aula será tão doloroso como amputar-lhe uma mão ou uma orelha. Pela reacção selvática da aluna, a tese faz sentido.
O que não faz sentido, para estes especialistas, é criticar um bárbaro por ser um bárbaro. E, de certa forma, eles têm razão: anos de pedagogia "romântica" não geraram apenas o clima que desculpa o bárbaro. Pela evidente exaustão que reina no ensino português, é quase uma obrigação ser-se um. Quando tudo em volta transpira a decadência, crime não é destruir. Crime é não destruir. A aluna, como o saudoso Alarico, limitou-se a sentir o "demónio" dentro dela.

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