terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Missão 100% Português

Telmo Azevedo Fernandes no Blasfémias

Por mero acaso, durante o intervalo do noticiário, vi uma promoção da RTP a um seu programa dedicado a incentivar o consumo de produtos “100% portugueses”.

Investiguei um pouco e cedo percebi que a respectiva empresa produtora é uma afiliada ibérica do grupo internacional EndemolShine, curiosamente com sede na Holanda. A sucursal em Portugal, aparentemente, nem sequer teve papel de relevo no desenho deste produto televisivo.

Em coerência com o propósito deste programa, felizmente os patrocinadores da série são tradicionalíssimas empresas lusas como a Europcar e o Jumbo (Grupo Auchan). Outras portuguesíssimas marcas se associam à empreitada e apresentam-se orgulhosamente na língua de Camões: Vitrine-All About You; Ideia Hub-Empowering People; Reboques Amadora – Bus & Truck Service; Giovanni Gali; More Results; Seaside.

Só isto bastaria para demonstrar ao limite do risível o logro e a fantochada pegada que é este programa.

Num olhar mais substantivo dou-me conta de que há, no entanto, uma tentativa de doutrinação sobre o tema. Tristemente nenhuma das 40 pessoas que constam da ficha técnica se apercebe da confrangedora iliteracia económica que exibem.

Vejam bem que na apresentação de estreia uma voz-off interpela-nos da seguinte forma: “será que realmente precisamos de consumir produtos importados; ou podemos apostar no consumo nacional, ter um papel activo e ajudar a economia portuguesa?” (sic)
A mesma locutora informa que “vai desafiar um português para a mais importante missão: durante 6 meses esse português só poderá consumir produtos nacionais, porque practicamente tudo o que actualmente consome e utiliza é importado.” (sic). É este o crime do homem e esta a sua penitência!

Calma, há mais: uma das convidadas da primeira emissão foi Filomena Cautela que diz ser “parva” (sic) “porque poderia ter em casa só produtos nacionais e afinal não tem” (sic).

O “Missão 100% Português” tem uma produção tão esmerada que dispõe de “equipa de auditores” (sic) para inspecionar casas e pessoas com o intuito de “determinar a sua percentagem de portugalidade” (sic). Tem até um especialista em consumo que “ensina como comprar português” (sic).

Pensava eu que isto seria considerado algo perigosamente fascista, típico de regimes e sociedades retrógradas e anti-democráticas, mas parece que agora é progressista e moderno, sobretudo se fôr emitido como serviço público da RTP.

Esta narrativa tem sempre subjacente a ideia de que as exportações são virtuosas e as importações um dano ou um mal menor. É discurso recorrente e traz consigo um misto de demagogia e falta de conhecimento.

Slogans como “compre o que é nosso” ou “Portugal sou eu”, além de pura parolice, não passam de sofismas. Os produtos “nacionais” já não existem. Tudo é feito no mundo. A fragmentação geográfica das cadeias de produção e o comércio internacional tornaram sem sentido maniqueísmos do “nosso” versus “deles”. A fabricação de um produto final ocorre muitas vezes em vários países e implica a compra de componentes de múltiplas proveniências.

A ladainha do substituir as importações por produção nacional é vomitiva. Apelos ao patriotismo das preferências por produtos nacionais em vez de escolhas por produtos mais baratos ou melhores, independentemente da sua origem, é uma irracionalidade económica. O proteccionismo é discriminatório e privilegia alguns interesses com prejuízo do cidadão comum e da sociedade como um todo. É injusto, empobrece-nos, reduz o emprego e limita a liberdade individual.

As importações resultam da livre escolha e opções autónomas dos consumidores. Estes têm todo o direito a não pagar um preço mais elevado para usufruírem de produtos que valorizam e lhes traz bem-estar.

As importações são tão benéficas quanto as exportações.

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