Artigo de Ferreira Fernandes
Está quase tudo nos livros. Neste caso, num dos mais belos livros escritos na
nossa língua, Luuanda, de Luandino Vieira. Zeca Santos, garoto estouvado dos
musseques, anda sem trabalho, o pouco dinheiro de biscates ele gasta com camisa
e regressa esfomeado à cubata onde vive com a avó. Há dois dias que não comem, a
velha até já tentou cozer raízes de dálias. Nessa noite, porém, Vavó Xíxi dá uma
esperança ao miúdo: "Olha só, Zeca! O menino gosta peixe de ontem?" Zeca Santos
até passa a língua pelos beiços secos, suspira: "Vavó sabe que eu gosto. Peixe
de ontem..." Então, a velha diz: "Se gosta peixe de ontem, deixa dinheiro hoje,
para lhe encontrar amanhã..." Ontem, uma bela moradia da Camacha estava invadida
de gente, donos e vizinhos tentavam afastar as chamas das traseiras. Aquela casa
era a mais próxima do fogo, mas toda a fileira de vivendas dava as costas para
mato bravio. Os bombeiros ainda não tinham chegado, rapazes atiraram-se para a
piscina e passavam baldes de água para as mulheres e homens que defrontavam o
incêndio. Depois do muro era mato seco e árvores de copas juntas, tudo varrido
por línguas de fogo. Se no outono e inverno se abrissem caminhos nos terrenos
baldios e na primavera se limpasse o mato, encontrar-se-ia, amanhã, o verão de
que se gosta. Isso diria a Vavó Xíxi, tão longe e tão certa.
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