quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Quarenta Ou Catorze

 Artigo de Pedro Mexia publicado no Expresso (24 de Outubro de 2025)

Liz Phair quis escrever as 18 canções como se fosse uma das mulheres ou raparigas mencionadas nas canções dos Stones

Se a terceira vaga do feminismo valorizou não a vitimização, mas a “agência”, ou seja, a auto-determinação, então não me parece mal um panteão feminista onde esteja a hoje esquecida Liz Phair, em especial por causa do disco de estreia, “Exile in Guyville”, de 1993, que citarei pedindo desculpa pelo excesso de inglês e de genitália.

A “agência” começa no título. As 18 canções do disco querem-se um diálogo, ou um contraditório, com “Exile on Main St.” (1972), que é ao mesmo tempo um álbum fabuloso e um de tantos exemplos da “masculinidade tóxica” dos Rolling Stones. Não tem muito interesse estar a confrontar as canções uma a uma, o que já tem sido feito, com diferentes graus de sofisticação. O que importa é que os Stones em 72 já pareciam um pouco “cansados” de mulheres, ao menos no intervalo de coleccionarem conquistas. Liz Phair vinha do “indie rock” de Chicago, e “Guyville” era uma designação dada à zona de Wicker Park, onde se concentrava uma boémia essencialmente masculina. Por isso ela quis escrever as 18 canções como se fosse uma das mulheres ou raparigas mencionadas nas canções dos Stones, ou mulheres e raparigas que conhecia, ou como se o “eu” fosse mesmo ela. E imitou as guitarras dos Stones, a ginga, as palmas, as maracas, mas numa versão de baixa fidelidade e com um tom a que ela chamou, nas suas primeiras “demos”, “girly-sound”.

À época, houve grande alarido por causa da linguagem “ordinária”. Mas o que Phair fez foi chamar as coisas pelos nomes, dizer as coisas como elas são. Talvez por isso, ou porque Liz era uma loira de olhos azuis-verdes e boca sensual, o álbum ficou com uma fama lúbrica que não é inteiramente merecida. Até os “indies” de Chicago, incluindo mulheres, lhe chamaram “slut” (“pega”), devido ao vocabulário e às situações descritas, ou porque não conseguiam imaginar uma mulher a ter sucesso sem ser dormindo com homens poderosos.

As principais provas de acusação, quatro belíssimas canções, são ‘Glory’, ‘Canary’, ‘Fuck and Run’ e ‘Flower’. Eis alguns versos que sobressaltaram as gentes, bem como outros aos quais não prestaram igual atenção. De ‘Glory’: “He’s got a really big tongue/ It rolls way out/ Snaking around in the club/ It slicks you down”. Isto é uma “pega”, ou uma mulher a descrever um comportamento masculino? É capaz de ser a segunda hipótese, desenvolvida logo a seguir: “Scratching his face like a bum/ He pulls you back/ Circa 1981/ He pulls you back/ (...) You are, you are/ Shining some glory on me”. Ele é um vagabundo, no sentido brasileiro do termo, afasta-a depois de ter o que quer, depois de ter “projectado a sua glória” nela. Ah, e isto aconteceu “por volta de 1981”, o que significa, se admitirmos que a canção é autobiográfica, que a rapariga tinha 13 ou 14 anos. Item 2, ‘Canary’. Leonard Cohen, a quem nunca ninguém chamou deselegante, compôs, sem causar nenhum alarme social, ‘Light as the Breeze’. Então porque é que Liz Phair, uma rapariga de 26 anos, não podia abordar o assunto das práticas sexuais em Latim? Diz Liz: “I jump when you circle the cherry/ I sing like a good canary/ I come when called/ I come, that’s all”. Isto numa canção onde se fala de obediência e de arrumar a casa. É uma “pega” ou uma namorada exausta? Todo o álbum traz à conversa homens que não têm “satisfação”, como os Stones, nem se preocupam com a satisfação das mulheres, jovens imaturos, ou sujeitos de meia-idade que se julgam o Marlboro Man, que desaparecem sem rasto, ou que casam “até que a morte os separe” porque já estão mortos.

Delito número 3, o “one-night stand” de ‘Fuck and Run’: “I woke up alarmed/ I didn’t know where I was at first/ Just that I woke up in your arms/ And almost immediately I felt sorry/ ‘Cause I didn’t think this would happen again”. Entretanto, ele vai-se embora, pede-lhe que ligue noutro dia, mas ela sabe que isso é conversa, que viveu mais um caso de atropelamento e fuga, como explica chocantemente: “It’s fuck and run, fuck and run/ Even when I was 17/ Fuck and run, fuck and run/ Even when I was 12”. Por mais “agência” que se tenha, quando se vive num meio que naturalizou o sexo com menores é difícil fugir dessa “liberdade” ilusória, “with or without my best intentions”. E o que é que ela quer, aos vintes? “I want a boyfriend/ I want all that boring old shit like/ letters and sodas”. Mesmo que ela fosse “promíscua” ninguém tinha nada a ver com isso, mas estes versos indicarão sequer desejo de promiscuidade? Ou não preferem o “aborrecimento” de um namoro a um abalroamento e deserção? Quarto e último caso, ‘Flower’. Liz declama uma lengalenga, enquanto faz de coro por cima da sua própria voz: “Everytime I see your face/ I get all wet between my legs/(…) Everytime I see your face/ I think of things unpure unchaste/ I want to fuck you like a dog/ I’ll take you home and make you like it”. Isto é extraordinário porque começa como um episódio comum de excitação feminina, segue para a vontade de agradar ao parceiro, e põe a hipótese de o homem nem saber bem o que quer: “You act like you’re 14 years old/ Everything you say is so/ Obnoxious, funny, true and mean/ I want to be your blowjob queen”. A estocada é de matador: “You’re probably shy and introspective/ That’s not part of my objective”. E aqui percebemos que aquele “you” pode bem ser quem ouve a canção, trintões e quarentões de 14 anos.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário