sexta-feira, 7 de março de 2014

Crimeia - A História Não Justifica Nada

Artigo de Henrique Monteiro
 
É. no geral, errado quando se pretende justificar um ou outro ponto de vista por motivos históricos. A História, tal como é apresentada na maioria dos textos, não pode justificar mais do que mitos e meias verdades. Não é só na Crimeia, o mesmo se passa na Catalunha. (Recomendo o excelente texto no "Público" de domingo passado, da autoria de Jorge Almeida Fernandes, "Mitos tóxicos do nacionalismo catalão"; aí se pode ver como o Governo catalão aldraba a história, inventando 700 anos de independência, para o que esconde o reino aragonês, de que a Catalunha fazia parte, rebatizando-o como reino cataluno-aragonês, que nunca existiu).
Mas voltemos à Crimeia e ao argumento da maioria russa naquele território. É verdade que essa maioria russa é clara e por isso é natural que queira um referendo que Moscovo se apressa em reconhecer. Mas isso justifica uma secessão da Ucrânia? A Crimeia era uma república soviética que foi oferecida ao governo de Kiev, por Kruschov, em 1954, no âmbito do 30º aniversário da unificação da Rússia com a Ucrânia, mas essa oferta existiu para fazer esquecer um crime. Esse crime é a razão para haver tantos russos na Crimeia. 10 anos antes, em 1944, Estaline mandou deportar à força a população crimeio-tártara do seu território. Estima-se que mais de quatro em cada 10 deportados tenham morrido à fome e de complicações relacionadas com a falta de alimentos.
Os Tártaros estavam na península desde o século XIII, onde reinaram depois como soberanos dependentes do Império Otomano (razão pela qual os turcos também olham, interessados, o desenlace do conflito), mas antes já havia Crimeia. Tinha sido dos Genoveses, dos Venezianos, dos Mongóis, dos Hunos, dos Cazares, dos Godos, dos Romanos, dos Gregos, dos Persas.
Como todas as zonas estratégicas, a Crimeia foi de quem conseguiu conquistá-la a fio de espada. A maioria russa atual não é mais do que o resultado de uma de muitas invasões e da deportação da população que ali estava há 600 anos.
A História não pode servir de pretexto, sob pena de legitimarmos no séc. XXI as barbáries que Estaline ainda há 70 anos promoveu. Há, essencialmente, um acordo sobre a integridade territorial da Ucrânia (que inclui a Crimeia) que os russos assinaram. Um ponto é saber se os russos querem honrar o acordo ou não? Outro é saber que garantias podem ser dadas aos russos para continuar a usar o porto de Sebastopol.
A liberdade da Crimeia não pode ser reclamada como se a história tivesse começado com Estaline ou com uma falsificação sobre a população histórica da zona. A liberdade da Crimeia terá de ser o resultado de negociações que levem em conta a situação atual, o desejo dos seus habitantes e os interesses ucranianos e russos. Mas não pode resultar da simples vontade de uma maioria que foi imposta à força no território e que finge ali estar desde tempos imemoriais.

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